quinta-feira, 27 de agosto de 2015

251 - Sobre o Jesus Histórico, Gerhard Ebeling (1912-2001), professor em Tübingen


Historiador da igreja e teólogo sistemático, Ebeling se preocupou especialmente com o problema da fé em suas muitas ramificações: a relevância do Jesus histórico para a fé e a teologia; o problema da transição do Jesus da história para a fé em Jesus como o Senhor exaltado; e o ensinamento de Jesus sobre a fé. Ebeling distinguia os seguintes elementos no ensinamento de Jesus como históricos:
- a proximidade do reino de Deus como o âmago de sua mensagem;
- a identificação de sua vontade com a de Deus, de modo que ele não apela para Moisés (como os rabinos) nem mesmo para Deus (como os profetas), mas usa as palavras inéditas “em verdade eu vos digo”;
- obediência à vontade de Deus que liberta a humanidade do legalismo e da casuística;
- e uma conclamação à conversão e ao discipulado com alegria.

Obra de Ebeling Palavra e Fé (1963); A Natureza da Fé (1961); O Problema da Historicidade (1967).

David Rubens

250 - Jesus Histórico, Hans Conzelmann (1915-1989), professor de Novo Testamento na Universidade de Göttingen


Em 1959, Conzelmann ofereceu um outro estudo pós-bultmanniano sobre Jesus. Ele também foi uma síntese muito positiva do que pode ser conhecido sobre o Jesus histórico. Para Conzelmann, Jesus é a confrontação da humanidade com Deus; a proclamação de Jesus, em seu ministério, da vinda do reino de Deus já nos envolve. Sua palavra é a palavra definitiva de Deus; seus atos tornam o reino de Deus presente. A obra Teologia de São Lucas, de Conzelmann (em alemão: 1954) dá uma percepção da história da redação praticada pelos pós-bultmannianos. Conzelmann sustentou que Lucas tinha um ponto de vista teológico definido, à luz do qual reescreveu a história de Jesus e acrescentou um volume complementar que lida com a história da protoigreja. Segundo Conzelmann, os protocristãos pensavam que a vinda de Jesus significava absolutamente o fim da história e que, portanto, o período entre a ressurreição-ascensão e a parúsia seria muito curto. Com o atrazo da parúsia, a protoigreja teve de repensar toda a sua teologia. Nesta tarefa de repensar, sustenta Conzelmann, Lucas modificou deliberada e radicalmente a perspectiva escatológica de Jesus e das fontes mais primitivas (por exemplo, de Marcos) ao introduzir a perspectiva da história da salvação na teologia protocristã, com o ministério público de Cristo como período intermediário entre o de Israel e o da igreja. Conzelmann, e os pós-bultmannianos em geral, vêem a concepção de Lucas como secundária e errônea, na verdade como uma falsificação e distorção do evangelho original. (É aqui que Cullmann discorda dos pós-bultmannianos, ao sustentar que a concepção lucana da história é primária e está enraizado no ensinamento de Jesus, cuja perspectiva escatológica foi seriamente superenfatizada por Conzelmann.).

David Rubens


249 - Sobre o Jesus Histórico, Günther Bornkamm (1905-1990), professor em Heidelberg


Trinta anos depois da obra Jesus de Bultmann, Bornkamm publicou Jesus de Nazaré (em alemão: 1956), o primeiro estudo pós-bultmaniano sobre o Jesus histórico. Como Käsemann e Fuchs, Bornkamm considerava a incomparável autoridade de Jesus como historicamente válida e relevante para a fé cristã. Käsemann encontrou esta autoridade manifestada no ensino de Jesus; Fuchs, em sua conduta. Bornkamm afirmou que a impressão mais forte que os evangelhos dão é a autoridade imediata e sem paralelo de Jesus, uma autoridade que é absoluta e está presente tanto nas palavras quanto nos atos de Jesus. Esta autoridade tem sua fonte no Jesus histórico e não é um produto da fé. Embora a fé a tenha reconhecido e a proclamado, não a criou.
Além dessa experiência de autoridade, podemos estabelecer os seguintes fatos acerca do Jesus histórico. Jesus era judeu, filho do carpinteiro José, de Nazaré na Galileia. Ele pregou em cidades ao longo do Lago da Galileia, curou e fez boas obras, e lutou contra a oposição dos fariseus. Por fim, foi crucificado em Jerusalém. Mais importante, porém, do que estes simples fatos históricos que dizem respeito ao ministério de Jesus era sua importância existencial o fato de que, no ministério, a hora crucial, escatológica estava presente, chamando- nos a uma decisão. Um encontro histórico com Jesus era, portanto, um encontro escatológico com Deus.

David Rubens


248 - A questão de Jesus, Ernst Fuchs (1903-1983), professor em Marburgo


Em 1956, um outro pós-bultmaniano, Fuchs publicou em ZTK, a revista dos pós-bultmannianos, um artigo intitulado “A busca do Jesus histórico”, no qual propôs seus cânones para a nova busca. Fuchs procurou no comportamento ou conduta de Jesus algo que seja histórico e relevante para a fé. Especialmente em sua graciosa comunhão de mesa com os excluídos, seu comer e beber com os pecadores, Jesus viveu eficaz e autoritativamente o que pregou nas parábolas: a atividade redentora presente do Deus próximo. Esta declaração do amor de Deus pelos pecadores era autoritativa porque, ao receber os pecadores, Jesus se colocou no lugar de Deus, identificando sua vontade com a de Deus. Assim, encontramos na conduta de Jesus a chave para sua autocompreensão de quem e o que ele era: o representante escatológico de Deus. A confiança de Fuchs na historicidade dos registros dos evangelhos acerca da atividade de Jesus estava fundamentada na crença de que a igreja estaria menos propensa a mudar os atos do que as palavras de Jesus.

David Rubens


quinta-feira, 20 de agosto de 2015

247 - Os pós-bultmannianos: Ernst Käsemann (1906-1988), professor em Tübingen


A Nova Busca ao Jesus Histórico foi formalmente lançada em 1953 por Käsemann num artigo intitulado O problema do Jesus histórico. Käsemann salientou três aspectos importantes neste artigo:
- Se não há conexão entre o Senhor glorificado da fé cristã e o Jesus terreno, histórico, então o cristianismo se torna um mito não histórico. Käsemann atinge aqui o perigo inerente à demitologização bultmanniana do querigma - o perigo de um querigma docético, não histórico.
- Se a protoigreja estava tão desinteressada na história de Jesus, por que os quatro evangelhos foram escritos, afinal? Os evangelistas certamente criam que o Cristo que eles pregavam não outro senão o Jesus terreno, histórico.
- Embora os evangelhos sejam produto da fé pascal e seja, portanto, difícil chegar até o Jesus histórico, a fé cristã exige a confiança na identidade do Jesus terreno e do Senhor exaltado do querigma.
Além desta defesa teórica da necessidade da nova busca, Käsemann indicou princípios metodológicos pelos quais a nova busca poderá ser realizada:
- Para estabelecer qualquer dito ou ato de Jesus como autêntico, precisamos eliminar todo material dos evangelhos que possua um tom querigmático. Tais ditos não são necessariamente inautênticos, mas visto que se assemelham à proclamação da igreja, eles não podem ser provados como ditos autênticos de Jesus. Sua situação na vida poderia ser uma situação ou fé pós-pascal.
- Deve-se excluir qualquer coisa que tenha paralelo no judaísmo contemporâneo, por exemplo, na tradição rabínica ou na apocalíptica judaica contemporânea, por não ser demonstravelmente autêntica.

- Um dito autêntico de Jesus deveria refletir traços aramaicos. Käsemann modificou um pouco sua posição mais tarde, substituindo o gnosticismo de Bultmann pela apocalíptica judaica como pano de fundo da teologia cristã primitiva. Após a aplicação rigorosa destes critérios, Käsemann encontrou no ensinamento de Jesus elementos que provêm inquestionavelmente do próprio Jesus.

Prof. David Rubens 

246 - Crítica das Formas: Martin Kähler (1835-1912), professor em Halle durante a maior parte de sua carreira



Kähler criticou a tentativa liberal de identificar o Jesus histórico com a obra O chamado Jesus histórico e o Cristo bíblico histórico (em alemão: 1892), um livro que foi reimpresso em 1956, durante o estágio inicial da reação pós-bultmanniana. Para Kähler, sobre a pesquisa do Jesus histórico, os evangelhos são nossas únicas fontes, e eles tem um alcance limitado, deixando muitas perguntas sem resposta. É preciso resistir à tentação de especular demais sobre a vida de Jesus, como algumas analogias históricas e psicológicas fazem. Ele conclui que não precisa saber todos os detalhes sobre a vida de Jesus.Tudo o que precisamos saber é que Jesus morreu pelos pecados do mundo. É através dele que nós somos redimidos. A preocupação com detalhes tênues sobre a vida de Jesus distrai do que o que realmente importa sobre Jesus - sua morte redentora e sua posterior ressurreição. Kähler teve um profundo impacto sobre a teologia de Paul Tillich.

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245 - Os pós-bultmannianos: Reação da escola de Bultmann.


Os pós-bultmannianos. A mais conhecida reação à ortodoxia bultmanniana certamente foi a que surgiu entre seus próprios discípulos. Apesar do individualismo destes ex-alunos de Bultmann, esta reação foi suficientemente bem definida para introduzir uma nova fase pós-bultmanniana na exegese. Duas áreas nas quais os pós-bultmannianos se basearam no trabalho de Bultmann, apenas para reexaminar de modo crítico algumas de suas teses fundamentais, foram toda a questão do Jesus histórico e a importância e relevância da filosofia posterior de Heidegger para a exegese e a teologia.
Para Bultmann, a natureza querigmática do evangelho impedia qualquer tentativa de alcançar o Jesus histórico por meio da confissão de fé da igreja primitiva em Cristo, o Senhor ressurreto. Segundo Bultmann, a protoigreja não tinha interesse biográfico no Jesus de Nazaré histórico, mas concentrou seu olhar exclusivamente no Cristo da fé proclamado no querigma. O Jesus histórico era, portanto, irrelevante para a fé cristã. Mas, não obstante todo o seu ceticismo teórico com relação a uma busca histórica que chegasse até atrás do querigma, em História da Tradição Sinótica (1926), Bultmann fez um grande esforço para averiguar as palavras e os atos de Jesus. E esta direção na obra do próprio Bultmann que os pós-bultmannianos alegam ser promovida em sua nova busca do Jesus histórico.

Prof. David Rubens


244 - Escatologia Realizada: Charles Harold Dodd (1884-1973), professor de teologia em Oxford e na Universidade de Cambridge



A preocupação com a relevância na comunicação da mensagem do NT não foi reserva exclusiva da escola de Bultmann. Já na década de 1930, Dodd conclamou a um fim da atomização crítica do NT, embora este estudo tenha sido necessário; e ele próprio deu os primeiros passos na direção de uma síntese. Embora não fosse membro da escola da crítica das formas, Dodd contribuiu para nosso conhecimento do evangelho por trás dos evangelhos em Pregação Apostólica (1936), uma investigação da pregação mais antiga da igreja, especialmente em Atos e em Paulo. Dodd encontrou neste querigma apostólico primitivo a unidade subjacente do NT, e nisto ele foi seguido por muitos exegetas católicos. Não menos influente foi sua obra Parábolas do Reino (1935), uma tentativa, frequentemente bem sucedida, de chegar até atrás das parábolas como as encontramos nos evangelhos e até as parábolas como foram proferidas originalmente por Jesus. J. Jeremias, em seu estudo sobre as parábolas, admitiu livremente sua dívida para com a obra de Dodd. Dodd também formulou neste livro sua teoria amplamente discutida da “escatologia realizada”, o fato de que o reino pregado por Jesus nas parábolas era mais uma realidade presente do que futura. Dodd deu aos estudos joaninos dois livros brilhantes. O primeiro deles, A interpretação do Quarto Evangelho (1953), é um estudo do pano de fundo, dos conceitos principais e da estrutura de João. Uma crítica ao livro é que Dodd enfatiza excessivamente o helenismo como o universo ideativo que produziu João, uma posição que precisa de sérias modificações em vista das descobertas de Qumran. Dez anos mais tarde, Dodd publicou A Tradição Histórica do Quarto Evangelho (1963), um estudo sobre a relação entre João e os sinóticos e uma defesa da confiabilidade de João, que Dodd mostrou estar baseado numa tradição paralela, mas independente, à sinótica e que merece ao menos o mesmo respeito histórico. Em todo o seu trabalho, Dodd mostrou um alto grau da competência histórica e teológica que se tornou uma marca registrada da melhor pesquisa britânica do NT. 

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243 - História da Salvação: Wolfhart Pannenberg (1928-2014), professor de Teologia Sistemática na Universidade de Munique


Pannenberg apresentou uma contestação ao método de Bultmann com sua obra A revelação como história 1961, e Jesus - Deus e homem 1964. Pannenberg propõe uma alternativa à falta de interesse na história característica da teologia barthiana da Palavra e à transferência bultmanniana da revelação ao querigma e não à história. Segundo Pannenberg, a autorevelação de Deus não vem a nós imediatamente (como pensam Barth e Bultmann) nem por meio de uma história redentiva especial (como propõe Cullmann), mas mediata e indiretamente, espelhada nos acontecimentos da história. Visto que a história se torna o local da revelação, a revelação é verificável pelos métodos da pesquisa histórica.

E se a história revelatória pode ser conhecida pela razão, então a fé não produz, mas pressupõe o conhecimento racional. A fé não nos dá o significado interior de acontecimentos da história passada, mas é confiança orientada para o futuro, para o fim da história universal antecipado no evento Cristo.

Prof. David Rubens

242 - História da Salvação: Oscar Cullmann (1902-1992), professor na Universidade de Basileia


Cullmann se tornou o principal proponente da história da salvação como a chave para a compreensão do NT. Ele propôs esta alternativa à escola de Bultmann em dois livros importantes. Cristo e o tempo, Salvação e história (alemão 1965). A abordagem histórico-salvífica concebe a história como uma série de épocas redentivas, sendo o evento Cristo o ponto central de uma linha do tempo que inclui um período anterior de preparação, o estágio presente da igreja e o futuro escatológico. Toda a história bíblica está marcada pela tensão permanente entre promessa e cumprimento, o “já” e o “ainda não”. Contrariamente ao pensamento de Bultmann, Cullmann sustentou que a história da salvação não é uma distorção lucana, mas está enraizada no ensino de Jesus. A história da salvação é, assim, uma característica de todo o NT, do próprio Jesus até João. Cullmann defendeu o caráter apropriado da história da salvação como ferramenta exegética para se chegar ao significado original do NT destacando que Jesus e a protoigreja se basearam no AT e seu conceito de história.
Também se deveria mencionar a importante contribuição de Cullmann para a teologia bíblica, o livro A cristologia do Novo Testamento (alemão: 1957). Nesta obra Cullmann tentou definir a cristologia da protoigreja expressa no NT, sem as interpretações mais desenvolvidas da teologia subsequente. Ele examinou dez títulos aplicados a Jesus no NT, que se referem à obra terrena de Jesus, sua obra escatológica futura, sua obra contemporânea na igreja e sua preexistência. Cullmann enfatizou exclusivamente o aspecto funcional da cristologia e evitou as categorias estáticas da teologia greco-romana, com suas noções mais desenvolvidas de pessoa e natureza, como além dos limites da exegese.
Para dar uma ilustração de seu método, podemos examinar o título Senhor (Kyrios), que Cullmann expõe no tópico da obra contemporânea de Cristo na igreja. Ele concorda com Wilhelm Bousset (1865-1920) que a experiência da igreja no culto da presença de Jesus o Senhor deu proeminência a este título, mas, contra Bousset, Cullmann mostra que este título cristológico mais desenvolvido tem suas raízes no cristianismo palestinen- se e não é o resultado do encontro da igreja com os cultos de mistérios helenísticos.


Prof. David Rubens

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

241 - Crítica das Formas: Reações a Bultmann


Uma medida da influência de Bultmann sobre o estudo do NT é a extensão das reações - tanto favoráveis quanto hostis - causadas por sua obra. Estas reações cobrem todo o espectro do pensamento cristão, desde um conservadorismo fundamentalista que rejeita totalmente sua obra até o liberalismo que acusou Bultmann de não ir suficientemente longe na demitologização porque reteve a realidade do ato de Deus em Cristo. Na Europa, católicos vários teólogos católicos tornaram-se autoridades importantes na teologia de Bultmann.
A escola escandinava da história das tradições, em particular, forneceu corretivos importantes ao negativismo da crítica das formas de Bultmann. Birger Gerhardsson (1926-2013) sustentou que as narrativas dos evangelhos são o resultado não de um processo criador, mas preservador, através de uma instituição na protoigreja destinada à transmissão da tradição dos evangelhos, semelhante a uma instituição rabínica contemporânea destinada à transmissão controlada da Torá escrita e oral. A obra de Gerhardsson foi uma alternativa bem-vinda ao juízo negativo sobre a historicidade característico de grande parte do estudo da crítica das formas.
De interesse mais amplo, contudo, foram as alternativas ao radicalismo de Bultmann propostas por teólogos alemães e britânicos mais conservadores, bem como os debates travados na Alemanha pelos ex-alunos de Bultmann.

Reação da pesquisa alemã conservadora
A teologia de Bultmann não ficou sem oponentes na Alemanha, os quais fizeram objeções a seu ceticismo excessivo e encontraram a chave hermenêutica para o NT não no existencialismo heideggeriano, mas na própria Bíblia.

Karl Barth (1886-1968), Lecionou teologia nas universidades alemãs de Göttingen, de Munique e de Bonn. Mais teólogo sistemático do que pesquisador do NT, Barth foi inicialmente aliado de Bultmann. Mas Guerra Mundial o fez perceber o caráter inadequado da teologia liberal, e ele expressou seu desencanto em seu memorável e vigoroso comentário sobre a Epístola aos Romanos, que se concentrou na importância teológica de Romanos, enfatizando a Bíblia como a palavra de Deus. Um estudo histórico-crítico científico era, na melhor das hipóteses, apenas uma preliminar à verdadeira tarefa da exegese teológica, “pneumática”. Enquanto os estudos de Bultmann diziam respeito ao lado humano do relacionamento entre Deus e a humanidade (como podemos receber a revelação), Barth enfatizava o lado divino (Deus como a fonte de revelação). Bultmann foi inicialmente um defensor de Barth, com quem ele concordava quanto ao princípio, mesmo que não quanto à metodologia. Contudo, a hermenêutica demitologizadora e existencial de Bultmann não se deparou com a concordância de Barth. 


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David Rubens

240 - Crítica das Formas: Bultmann e o Comentário do Evangelho de João.


Bultmann escreveu sobre João durante um longo período de tempo, começando em 1923. Sua obra prima foi seu comentário de 1941. Com sua penetrante exegese crítica, este comentário confirmou Bultmann como um exegeta muito influente na história do estudo da Bíblia, ainda que muitos discordem de suas conclusões. Segundo Bultmann, o primeiro passo na formação de João foi a obra do evangelista, muito possivelmente um gnóstico convertido à fé cristã. Ele extraiu o conteúdo de seu evangelho de três fontes principais e independentes umas das outras:
1) uma fonte de sinais, uma coletânea de milagres, mais simbólicos do que históricos, atribuídos a Jesus;
2) discursos revelatórios, uma coletânea de discursos poéticos de origem gnóstica oriental;
3) uma fonte da paixão-ressurreição, paralela à tradição sinótica, mas independente dela.
Após a morte do evangelista veio a obra do redator, ou editor, cujo trabalho consistiu principalmente em organizar e harmonizar o material. A organização era necessária porque o redator encontrou uma desordem terrível no trabalho do evangelista. Ele fez o melhor que pôde para organizar o material em sequência, mas não foi totalmente bem sucedido. Bultmann via sua própria tentativa de reconstruir a ordem original de João como uma continuação da obra do redator. Uma vez que o redator conhecia a tradição sinótica, ele tentou harmonizar a obra do evangelista com esta tradição. Mais importante ainda, ele tinha harmonizar a obra do evangelista com o ensinamento padrão da igreja a fim de torná-la aceitável à sua ortodoxia; ele o fez acrescentando, por exemplo, as referências sacramentais à obra antissacramental do evangelista e a escatologia tradicional para equilibrar e corrigir a escatologia demitologizada do evangelho. Essa harmonização teológica era necessária por causa da inclinação gnóstica do evangelista que usou conceitos gnósticos demitologizados para interpretar o significado do Cristo para seus contemporâneos. O mito do redentor gnóstico é demitologizado ao ser unido à pessoa histórica de Jesus de Nazaré; o dualismo gnóstico é demitologizado ao ser transformado de um dualismo metafísico em um dualismo ético.

Bultmann enfatizou fortemente Jesus como o Revelador, cuja revelação não é a comunicação de segredos gnósticos sobre o mundo superior, mas simplesmente a pessoa do próprio Jesus. Assim, a questão principal em João não é a ação salvífica realizada por Jesus, mas suas palavras: ele é a verdade, ele é a luz, e ele tem de ser aceito. Todos os que o conhecem são salvos. Não há mais necessidade de história da salvação, pois Jesus oferece sempre, aqui e agora, a oportunidade de decisão.


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David Rubens

239 - Crítica das Formas e a Demitologização do Novo Testamento.


O manifesto de Bultmann, “O Novo Testamento e a mitologia”, publicado pela primeira vez em 1941, tornou-se o foco de agitação de um debate contínuo, frequentemente acompanhado de mal-entendidos. Duas observações iniciais:
1) Por mito, Bultmann não entende uma história imaginária ou algum tipo de conto de fadas, mas o uso de imagens para expressar o sobrenatural em termos deste mundo.
2) Dever-se-ia reconhecer a intenção profundamente pastoral da conclamação de Bultmann à demitologização, e., a interpretar o NT em termos existencialistas. Para Bultmann, a demitologização não é uma redução do NT, mas o único modo de tornar sua mensagem salvadora acessível hoje em dia.
Bultmann sustentava que a interpretação é necessária porque atualmente as pessoas não acham digna de crédito a cosmo- visão mitológica obsoleta do NT. Portanto, para que elas sejam desafiadas a uma decisão pelo querigma, o NT precisa ser demitologizado; o marco mítico do NT precisa ser interpretado, para expor a compreensão de vida humana contida nele. Bultmann encontrou no existencialismo de Heidegger uma ferramenta adequada para esta interpretação do NT. Além disso, para Bultmann esta interpretação é válida não apenas porque a própria natureza do mito a exige, mas também porque podemos ver este processo tendo início no próprio NT, especialmente em Paulo e João. Um exemplo desta demitologização no NT é a “escatologia realizada” de João, e, sua ênfase na vida eterna aqui e agora, não em algum futuro distante. Finalmente, o aspecto pastoral da demitologização se torna claro quando se percebe que a eliminação da pedra de tropeço desnecessária da mitologia ajuda Bultmann a expor a verdadeira pedra de tropeço, a ofensa do evangelho que proclama que o ato escatológico de Deus “por nós e para nossa salvação” ocorreu na vida e morte de Jesus Cristo.
A reação perceptiva discordante de Bultmann (distinta da reação fundamentalista) não se dirigiu contra a necessidade básica de reinterpretar, decodificar, “demitologizar” algumas das imagens míticas do NT, mas contra o juízo de Bultmann sobre o que constitui imagem ou mito inaceitáveis. Por exemplo, a ressurreição dos mortos e o miraculoso, que, para Bultmann, não são mais significativos atualmente, continuam significativos no juízo de outros pesquisadores.


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David Rubens



238 - Crítica das Formas e a obra de Rudolf Bultmann


Certamente Bultmann (1884-1976) foi o personagem mais influente no estudo do NT no séc. XX, combinando uma imensa erudição e pesquisa com um desejo profundamente pastoral de pregar uma mensagem significativa e relevante a seus contemporâneos num mundo onde não é mais fácil ter fé. Marburgo, o cenário da carreira docente de Bultmann, tornou- se uma Tübingen moderna na influência que exerceu sobre a teologia protestante. Em termos de mero volume, o trabalho de Bultmann se estendeu por um período de quase 50 anos e provocou o surgimento de uma biblioteca de literatura pró e contra.
Existem diversas influências dominantes distinguíveis no pensamento de Bultmann. De David Friedrich Strauss (1808-1874), Bultmann tomou o conceito de mito como a chave para a interpretação do NT. Ele aceitou a concepção sobre o caráter não messiânico da vida de Cristo e o gênio criador da pro-tocomunidade cristã. A escola da história da religião contribuiu com sua concepção sincretista da origem do cristianismo e com a suposição da influência penetrante do gnosticismo no mundo do NT. A crítica das formas contribuiu para a falta de interesse de Bultmann no Jesus histórico. Mas por baixo desses diversos elementos e como fator produtor de sua unidade básica, podem-se encontrar no cerne do pensamento de Bultmann e presente em toda a sua obra, duas influências principais: um luteranismo consistente e o existencialismo de Martin Heidegger (1889-1976).
O luteranismo é uma constante no pano de fundo e na orientação do pensamento de Bultmann. Ele pode ser discernido facilmente em sua forte ênfase evangélica na pregação da palavra. Mas o luteranismo de Bultmann ia mais fundo, pois ele entendia seu próprio empreendimento teológico como uma conclusão lógica da doutrina reformada da justificação somente pela fé. Aqui reside a razão teológica da falta de interesse de Bultmann no Jesus histórico, pois procurar uma base histórica para a fé seria trair o princípio da sola fide [somente pela fé]. A desconfiança de Bultmann na busca por uma base objetiva para a fé subjaz, assim, a seu profundo ceticismo a respeito da historicidade dos relatos dos evangelhos e sua consequente desistorização do querigma. Em sua concepção, a única história que encontramos no querigma é Dass, o mero fato da existência e da morte por crucificação do homem Jesus de Nazaré. A Palavra que nos interpela no querigma é, portanto, o fundamento, bem como o objeto, da fé. A definição bultmanniana da fé em termos de opção e decisão pessoal, como um ato da vontade e não do intelecto, é um legado tanto de Lutero quanto de Heidegger. O conceito bultmanniano atenuado de igreja como pouco mais do que a arena na qual a palavra é pregada e ouvida tem suas raízes no individualismo de Lutero.
Heidegger e Bultmann foram colegas em Marburg de 1923 a 1928, e Bultmann admitia prontamente a influência que o pensamento de Heidegger, particularmente formulado em Ser e tempo teve sobre sua teologia. Um exemplo, a título de ilustração, é a interpretação de Bultmann acerca da teologia paulina mediante o conceito heideggeriano da transição da existência inautêntica para a autêntica. Tanto Heidegger quanto Bultmann distinguiam a existência inautêntica (vida humana cativa da ilusória segurança de um mundo moribundo) e a existência autêntica, que, para Heidegger, se alcança pela decisão pessoal. Para Bultmann, a existência autêntica é um dom de Deus alcançado pelo abandono da adesão a este mundo e pela abertura à palavra da graça perdoadora anunciada no querigma. Observamos que entre os discípulos de Bultmann a filosofia de Heidegger permaneceu uma questão candente.

Bultmann como crítico das formas
Trabalhando a partir das conclusões de Schmidt e Dibelius, Bultmann aplicou o método da crítica das formas em História da tradição sinótica (em alemão: 1921; em inglês: 1963). Contrariamente à abordagem mais conservadora de Dibelius, as investigações críticas das formas de Bultmann não são apenas um meio de classificação literária, mas devem levar a juízos sobre a historicidade dos relatos e a genuinidade dos ditos que se encontram na tradição. Seu ceticismo com relação à confiabilidade histórica se evidencia no fato de que ele atribui a maior parte da tradição à imaginação criadora das comunidades protocristãs. Ele encontra o material genuíno principalmente nos ditos de Jesus. Mas esta genuinidade não se estende aos contextos desses ditos nos evangelhos, a situação no evangelho, que é criação da tradição posterior, especialmente dos próprios evangelistas.

Bultmann como teólogo
A contribuição teológica mais notável de Bultmann foi na área da hermenêutica. Embora muitos discordem violentamente de suas propostas de solução, todos admitem que Bultmann lidou com um problema real, a saber, a dificuldade de comunicar a mensagem cristã no séc. XX. Como teólogo, a principal preocupação de Bultmann era que a mensagem do NT deveria desafiar as pessoas, e não impedi-las de tomar uma decisão existencial por causa de sua linguagem mitológica.

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David Rubens


terça-feira, 18 de agosto de 2015

237 - Crítica das Formas: Martin Dibelius (1883-1947), professor da Universidade de Heidelberg


O ano de 1919 assistiu à publicação da obra A Formação dos Evangelhos, de Dibelius. O ponto de partida de Dibelius foi que a atividade missionária e as necessidades da igreja primitiva ajudaram a moldar as tradições primitivas. Em sua exposição da tradição, ele propôs dois princípios que foram aceitos como axiomáticos pela crítica das formas posterior:
1) que os evangelhos sinóticos não eram obras literárias no sentido estrito da palavra, mas literatura menor, literatura destinada ao consumo popular;
2) que os evangelistas sinóticos não eram verdadeiros autores, mas compiladores de material preexistente. (O primeiro princípio foi matizado pela crítica literária mais sutil; o segundo foi contestado pela crítica da redação).
O último personagem no grande triunvirato da crítica das formas inicial foi Rudolf Bultmann. Os críticos da forma postulam um período de transmissão oral antes dos evangelhos escritos, durante o qual as histórias e ditos da tradição circularam como unidade separadas. Estas unidades separadas podem ser descobertas nos evangelhos e podem ser classificadas segundo sua forma literária. O fator determinante em sua preservação se encontra nas necessidades e interesses da comunidade cristã. Estas tradições têm pouco valor histórico. Os críticos da forma pressupunham, além disso, que os protocristãos não estavam interessados na história. Assim, os evangelhos não são biografias, que nos dessem um retrato histórico consistente da vida de Jesus, mas reflexos da fé e da vida da protoigreja. De fato, a comunidade cristã tinha tão pouco interesse na história que não fazia grande distinção entre a história do Jesus terreno e sua história pós-ressurreição e presença com a igreja, a quem ele ainda falava por seu Espírito. Sem as restrições da história e com sua segurança da presença de Jesus, a protoigreja podia adaptar livremente a tradição e até mesmo fazer acréscimos criativos a ela, se as necessidades eclesiais de pregação, apologética e culto, etc., assim o exigissem.

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David Rubens


sábado, 15 de agosto de 2015

236 - Crítica das Formas: Karl Ludwig Schmidt (1891-1956), professor de Novo Testamento na Universidade de Basel


O período da crítica das formas começou em 1919 com a publicação, por parte de Schmidt da obra O marco da história de Jesus. A tese de Schmidt era que os evangelhos sinóticos eram coletâneas, parecidas com mosaicos, de episódios curtos da vida de Jesus, os quais tinham circulado como unidades independentes no período da transmissão oral e dos quais poucos tinham qualquer indicação de tempo ou lugar de origem. (A exceção importante era a narrativa da paixão, que parece ter existido como uma narrativa contínua e coerente muito cedo). Marcos forneceu um marco de elos de conexão e “passagens pontes” (resumos como 1,14-15; 21-22; 2,13 etc.) para estas unidades separadas e completas. Este marco é um produto das preocupações teológicas de Marcos, e não um retrato da vida de Jesus. Na terminologia da crítica das formas, Marcos não reflete a situação na vida de Jesus, e sim a situação na vida da igreja e a situação no evangelho.
A comunidade protocristã para a qual e na qual Marcos escreveu seu evangelho preservou e adaptou histórias relevantes para sua vida, seu culto, suas preocupações pastorais e missionárias.

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David Rubens


235 - Crítica das Fontes e Crítica das Formas


A crítica das fontes foi uma realização marcante do séc. XIX. Entre suas contribuições importantes estavam o estabelecimento da prioridade de Marcos, a identificação de Q e o uso dessas fontes em Mateus e Lucas. Mas a crítica das fontes não podia ir além disso, pois, por definição, ela estava limitada ao estudo dos documentos à disposição. A crítica do séc. XX propôs uma outra pergunta: podemos ir até atrás dos documentos escritos e chegar até o período entre os acontecimentos e os primeiros registros escritos (cerca de 30-60 d.C.), quando ao relatos das palavras e obras de Jesus circularam em aramaico? Este é o objetivo da crítica das formas (ou Formgeschichte = história das formas), que tenta investigar e analisar a origem e a história da tradição oral, pré-literária, que está por trás de nossos evangelhos escritos. A premissa é que os evangelhos são compostos de muitas perícopes menores, as quais circularam como unidades separadas nas comunidades protocristãs antes de os evangelhos serem escritos.
A crítica das formas está preocupada com as formas ou padrões destas histórias e ditos e as razões de sua preservação nos evangelhos. O impulso original para este estudo veio do grande biblista do Antigo Testamento Hermann Gunkel (1862–1932), que desenvolvera técnicas na interpretação do AT pelas quais tentou estabelecer as tradições orais subjacentes por trás dos documentos e a situação de vida destas tradições. A crítica das formas do NT desenvolveu a percepção de Gunkel, e podem-se distinguir três níveis na formação e preservação do material dos evangelhos.
1) A situação na vida de Jesus é o contexto e o significado de um relato ou dito avulso na vida terrena de Jesus sempre que este contexto seja recuperável.
2) A situação na vida da igreja é a situação ou contexto de um relato ou dito avulso da vida de Jesus da proto igreja. O que fez a protocomunidade preservar esta lembrança específica da vida de Jesus e qual significado ela lhe deu?
3) A situação no Evangelho é o contexto de um dito ou história do Senhor no evangelho em si. O que o evangelista quis ensinar ao registrar este acontecimento particular neste ambiente particular?
Esta última pergunta marca a transição da história das formas para a história da redação.

Acompanhe a continuação do estudo na próxima postagem...

David Rubens




Tradução: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. parte do artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.